terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Sweet Transvestite

Para “Michele Pfeifer”, a dama da noite soteropolitana.


Enquanto ouvia na minha vitrola a Janis rasgar sua voz, comecei a perceber batidas como se fossem batidas numa porta. Já tinha ouvido quase um lado inteiro e as batidas persistiam. Isso começou a me incomodar. Baixei o volume da vitrola pra ouvir de onde vinham aquelas batidas e ao encostar o ouvido na porta da kitnet, as batidas cessaram. No entanto, lá longe dava para ouvir um gemido abafado bem baixinho. Abri a porta, o corredor tava escuro e o gemido abafado que vinha daquela escuridão, entrava pelos meus ouvidos me causando certa aflição.

A origem daquele som não era naquele corredor, ele vinha de baixo. O silêncio tomava conta do prédio velho, que vim morar depois que me separei do Jorge, e assim o som se tornava cada vez mais intimo meu. Com as mãos no corrimão, fui descendo as escadas e cheguei ao andar de baixo. Não era dali também que aquele gemido vinha. Desci mais dois andares. O som se tornou mais forte e já se confundia com minha respiração. Mais um andar abaixo e ao pisar os pés no sub solo percebi que aquele som vinha do apartamento da Michele.

A porta estava entre aberta, a luz acesa. Fui entrando devagarzinho e ao olhar pra cama vi Michele deitada chorando sob o lençol ensanguentado. Ela estava de bruços. E ao me aproximar vi que o sangue escorria de um corte de sua cabeça. Nesse momento, matei a charada, as batidas não eram na porta, era da cabeça da Michele jogadas de encontro a parede, ao chão de madeira. Seu rosto estava deformado, o lábio partido, um olho roxo.

Ultimamente Michele vinha recebendo em casa moleques para sessões de masoquismo. Ela me falou certa vez quando nos encontramos na porta do prédio, que tinha comprado chicotes, cintas, gels para experimentar com os seus clientes, que na maioria das vezes eram moleques drogados que encontrava na saída de festas undergrounds do Pelourinho. Muitas vezes ela apanhava desses moleques e ainda tinha algum dinheiro roubado.

Ao ver o seu estado peguei Michele nos braços e levei porta fora em busca de ajuda. Arrumei um taxi e já perto do Hospital Geral, ela faleceu com a cabeça no meu colo. Chorei. Me indignei. E vim, depois de tomar várias cachaças no boteco aqui de junto, escrever esse texto anunciando-homenageando a sua pessoa. Homenageando também as outras Micheles que permanecem vivas porém ocultas, porque nas identidades trazem nomes de homens, que já não pertecem mais aqueles corpos femininos. Ocultas também de índices e das páginas de jornal.

PS: Essa história é ficção pura, a verdadeira “Michele Pfeifer” , a Dama da Noite soteropolitana está vivíssima, graças a todos os santos e orixás que essa Bahia traz consigo. Michele vive perambulando pelas ruas do centro da cidade de Salvador.

Na última vez que a vi, estava com o seu conhecido turbante, a sua voz rouca a la Ângela Rôrô e uma saia de tule branco. Lindíssima. Ao contrário de muitos, eu tenho uma fascinação por essas pessoas, “cidadãos” da noite, da rua. E me encanto, me surpreendo quando as vejo passar pelas ruas lá longe ou bem perto, trocando até umas palavras comigo.

Lembro da primeira vez que vi uma performance da Michele. Foi no Theatro XVIII, na R. Frei Vicente, Pelourinho. Enquanto esperava no foyer a peça começar, vi ela se aproximar e iniciar uma espécie de ária. Cantava a sua opereta biruta de frente pro teatro. Cantava com o corpo inteiro, as mãos soltas no ar, a cabeça coberta pelo turbante de um lado pro outro. Ao final da ultima nota, ela , deu passos em direção a sua platéia de meia duzia de pessoas. Queria como uma singela diva, receber um a um os cumprimentos de seus fãs. Impedida pelo segurança, ela ainda se voltou para nós, e num gran finale berrou palavras incompreendidas e saiu malemolente com toda a sua baianidade.

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